segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Haja recomeço... hajam sempre recomeços...


Por Karina Petroni Fischer  
  
Parte I
            Errou da primeira vez. Não contente, errou também na segunda, na terceira e sabia, por algum instinto assassino que errariam mais algumas boas vezes até que o bolo se tornasse um bolo de verdade. Não que hajam bolos de mentira, mas um bolo perfeito para uma mulher que sempre fez bolo de caixinha, não deixa de ser um bolo de verdade! Onde estava o problema do bolo? Qual era a razão para, mesmo usando pó (o pó Royal, por favor), ele parecer morto, desenganado, totalmente desfalecido?!
      Ainda não entendia o motivo, a razão pelo qual no sorteio, ela, justo ela, que sabia as últimas tendências de moda, da tendência cítrica, dos livros do ranking da Folha, ter sido A ESCOLHIDA para levar o bolo para a festinha de aniversário da chefe!
      Lógico que na hora, toda estupefata, disse:
      -Ai, gente, que bom. Descobri uma pâtisserie di-vi-na. O Júlio me levou até lá esse final de semana e tive que sujeitar a provar cada torta, cada pequeno doce que se desfazia como poema em minha boca... E nada de refrigerante para acompanhar, pelo amor. Chá, um chá divino de laranja com algo a mais. Já nem sei se era produto da minha imaginação ou eu estava em êxtase e...
      Priscila, amiga nada Poliana, a puxou de lado e disse baixinho:
      -Valentina, por favor, não comece agora a declamar. Você não entendeu a proposta do RH? Temos que mostrar que temos algo escondido, que dentro de você, de mim, há uma verdadeira chef de cuisine.
      Algo escondido?! Cada ideia que esse RH tinha para sacanear. Se for para mostrar algo, mostro onde escondo os meus relógios, o primeiro anel que ganhei, minhas bijuterias, onde escondo o chocolate de mim mesma, mas mostrar que escondo uma chef de cusine dentro de mim?! Sou tripolar, tenho múltiplas personalidades agora e não sabia? Vou a um terreiro para acharem essa pessoa e lá mesmo eu faço o bolo?!
      -Mas, pera aí, não é a festa de aniversário surpresa da Júlia? E, sinceramente, não tenho nenhuma chef de cuisine dentro de mim ou talvez foi em outra vida.
      -Valentina, um dia você aprende. Você acha que nessa agência se dá um nó sem ponto?!
      Não seria um ponto sem nó? Deixa quieto...
      -Com certeza, a Júlia teve uma reunião com o RH para unir o útil ao desagradável e assim, pensando na próxima campanha e no aniversário dela, inventou essa coisa.
      Ok, ok, mas alguém terá que fazer refrigerante, champanhe ou levar uma máquina para fazer a garapa na hora? Cada ideia, viu?! Deixou para lá os pensamentos. Olhou o papel novamente e lá estava: bolo de baunilha e buttermilk com ganache de maracujá. O que é ganache? Tipo, algo que você mistura com leite e maisena? E pensar que tudo começou com um bolo de fubá. Pelo menos era assim na época de escola, faculdade...
 Sentou a mesa e olhou os prédios ao longe. Logo virou e viu a chefe com seu alto, sua roupa engomada, sua vida Faces... Sabia um monte dela, mas enfim, contanto que ela estivesse feliz com o trabalho, com a vida dela para que se preocupar com um bolo de ganache e por que escreverem buttermilk? Que mania de estrangeirar tudo. Buttermilk não mais é do que leite com uma colher de vinagre ou suco de limão. Arre, estou farto de semideuses, onde é que há ainda bolo comum no mundo? Tanta sofisticação.
 Quanto ao bolo, caros (as) leitores (as), nem crescia e Valentina já estava ficando irritada pelo desperdício. Ah, a maldita integridade, ética, a culpa, os valores e sua mãe logicamente que disse que seria fichinha para sua filha tão perfeitinha. Mal sabia ela que estava na fase quem sou, onde estou, prefiro peixe à carne, o mundo está acabando e eu pensando em sapatos. Melhor deixar a mãe imaginando que era assim mesmo: que ela era linda, loira sem mechas havaianas, com um namorado tão educado (mas tão filhinho de papai que lhe dava nos nervos), e que fazer um bolo, oras, o que era um bolo perto do que passou para ingressar na melhor universidade de Publicidade e depois passar por testes nas melhores empresas onde desenhou, fez teatro e até fez de conta que era uma árvore? Melhor deixar que todos achassem que era magnâmica.
      Um bolo feito de tantas sutilezas, tantas camadas e cada instrução devia ser seguida. Não colocar nada antes da hora, respeitar os ingredientes. Quase como uma prece. Ainda achava que não daria conta. Pronto, não era capaz, não tinha esse talento e até quando seria a profissional perfeita, que dormia só 5 horas por noite para dar conta de ler revistas, jornais, correr, fazer escova, escolher o vestido, limpar o apartamento já que tinha uma faxineira, mas não achava que ela fazia tão bem o serviço (recomendação da vizinha. Seria meio chato dispensar assim do nada. Poderiam pensar que não tinha mais condições nem de pagar a faxineira e tinha uma imagem que deveria ser preservada), mas de um simples bolo veio toda a devastação. Não deixava de ser metafórico: o bolo não crescia e ela, apesar de ganhar bem, estava na mesma posição há anos assim como estava há anos com o mesmo cara.
      Ela não estava crescendo, estava parada, prostrada em seus pré-conceitos, suas inculcações sociais que foram acrescentadas dentro dela pelos desejos da mãe, do pai, da avó, do namorado. Sim, para eles era como um bolo sofisticado e tudo o que ela queria era ser um delicioso e simples bolo de fubá. Quente, sem frescuras, prático assim como os pensamentos que tinha no Jockey Clube: "como assim, dona Valentina?! Você está no lugar certo, com as pessoas certas e tudo o que passa pela sua cabeça é jogar tudo para o alto e dar a volta ao mundo?! Olhe bem a sua volta." Ela olhava e ouvia risadas soltas, nunca gargalhadas, pessoas se olhando de cima para baixo ou olhando ao redor, procurando pelos fotógrafos. Sentia um vazio no estômago que resolvia com um canapé. O vazio da alma ela afugentava.
Será que acreditamos naquilo que vemos, ou apenas vemos aquilo no que acreditamos? Desligou o forno, prendeu o cabelo, trocou de roupa e olhou-se longamente no espelho sem saber exatamente como já que era a primeira vez que, conscientemente, não procurava relacionar a melhor sombra com a roupa. Era ela e o rosto: sem batom, sem cílios postiços, sem roupas de grife, sem expectativas.
      Finalmente, abriu o forno, tirou o bolo e lá se viu: murcha e cheia de espaços.
      Adendo da voz que sempre nos acompanha:
      Caros leitores (as), sendo uma obra de ficção, eu poderia terminar por aqui, mas Valentina não era mais uma menina de 20 e poucos anos sem responsabilidades. Tinha um apartamento para quitar na zona sul da cidade, condomínio, contas, um nível de vida e logo veio o lance da imagem! Enfim, perder um emprego porque finalmente se viu por dentro através de um bolo, seria como perder o que tinha lutado e recomeçar. E qual era a diferença entre começar e recomeçar? Qual lhe traria menos dor? Qual lhe traria mais prazer, vida?
      Valentina se remoía por dentro, quase constipada de tanto provar massa de bolo. Pera aí, pera aí: como uma publicitária estaria sem ideias? Tinham, todos esses anos, esvaziado qualquer indício de curiosidade, de sagacidade?
       
Parte II
Quando foi a última vez que fez algo pela primeira vez?
      Pronto, ela gritou e começou a dançar uma dancinha dela: a mesma que fazia quando o carro, ao invés de disparar o alarme, tocava a musiquinha e ela fazia todos dançarem, participando assim das pequenas mágicas que a vida oferecia .
      Procurou a filmadora esquecida dentro do armário. Ligou para Priscila que atendeu ao telefone chorando: a tarefa dela era preparar Bicho do Pé. Nada dava a liga certa. Chorava compulsivamente e tinha colocado na cabeça que não era mais um plano de campanha, nem de aniversário, mas de demissão. Na verdade, ela falou alguns palavrões enquanto soluçava.
      -Pri, nos conhecemos há seis anos, não é?! Foi lá na agência, não foi, hein, hein? E qual foi a frase, do Jean Cocteau, que pediram para gente desenvolver uma propaganda?
      -Não sabendo que era impossível, ele foi lá e fez.
      -Justamente, venha para cá agora.
      Em menos de meia hora, Priscila estava lá. E estava por trás das câmeras. A questão não era mais o emprego, o aniversário da vil Júlia, mas sim aquela coisa que a gente deixa adormecer, mas está lá. Simplesmente ligou uma coisa a outra. Lembrou-se da conversa que teve com a psicanalista, Evelise, algumas semanas atrás quando disse que não sabia mais se ela existia  (metaforicamente) e esta, incrédula e com um sorriso nos lábios, disse: -"ao menos, que eu precise de óculos, você está bem a minha frente."
      Ela, cheia de si, sabendo que um bolo, nem tão simples assim, tinha aberto não só uma porta, mas várias, olhou bem para a câmera e disse:
-Quando foi a última vez que você fez algo pela primeira vez?
      Virou um mantra, virou sucesso na web. As duas arrebentaram o número de visitas no perfil que criaram no youtube. Arrebentaram também com a agência já que ganharam a campanha. Até processadas foram, mas se entre vários conselhos que a vó lhe dava, dois ela nunca deixou de botar em prática: guardar dinheiro todo mês e não economizar com advogado ( não assinava nem o nome em folha de rascunho sem antes perguntar ao Dr. Guavel). Ganharam a causa: ganharam até um programa de TV.
      Sentada em seu escritório no bairro nobre da cidade, na sua cadeira Bernardo Figueiredo abriu os e-mails e lá estava a pauta do próximo programa:
      "-Valentina, descobrimos uma escola em Sampa, Ciclo Femini, que diz que ensina pessoa a andar de bike e superar medos e tal. Basta você querer aprender. Mas é trilha, é radical. Na verdade, você participará de uma maratona de mountain bike e terá uma semana e meia para se preparar."
      Já não bastava ter escalado o Everest há dois meses? Como descobriram que morria de medo de bicicleta? E veio então, aquela vozinha que nunca mais ela tinha permitido sabotá-la e disse: -"ah vá, perto de um bolo de ganache, o que é uma bicicleta?!".
      Nada, nada mesmo.  

P.S: Não achem que não fizeram os Bichos de pé. Fizeram, comeram. Priscila finalmente confessou que precisava de terapia, mas Evelise, a psicanalista de Valentina, indicou uma amiga, a Cecília. Sabe como é: para não haver conflitos. Priscila finalmente largou da tarja preta: agora era só homeopatia. Recomendações da Dra. Elisabeth.